O caso de Elliot (e a Hipótese do Marcador Somático)

(Trabalho individual)

«Saber mas não sentir.»

«A tragédia deste homem, que em tudo o resto era saudável e inteligente, resultava do facto de, apesar de não ser nem estúpido nem ignorante, agir frequentemente como se fosse.»  

O caso de Elliot é apresentado no livro «O erro de Descartes» de António Damásio, como sendo o caso de «um Phineas Gage moderno» já que tem parecenças com o caso de Gage.

Este caso é brevemente apresentado na página 145 do manual « Nós de novo», surgindo no âmbito do estudo de regiões do cérebro associadas à emoção. É um caso que permite perceber que a perda de determinadas regiões do cérebro(por acidente ou doença) resultam em mudanças profundas nas emoções desses pacientes, o que leva à conclusão de que essas regiões influenciam diretamente as emoções e o comportamento que delas resulta.

Eis o que aconteceu ao paciente Elliot na década de 1980: Elliot era um indivíduo inteligente e bem-sucedido até sofrer um tumor cerebral que danificou o seu córtex pré-frontal( mais especificamente a área do córtex orbitofrontal) . Após a cirurgia para remover o tumor, Elliot tornou-se incapaz de tomar decisões eficazes, não obstante o seu QI permanecer o mesmo(«Elliot não demonstrou limitações quando foi submetido a testes padrão de inteligência.») e a sua capacidade de raciocínio lógico estar intacta.(«Era verdade que ele estava ainda fisicamente apto e a maioria das suas capacidades mentais estavam intactas. Porém, a sua aptidão para tomar decisões estava diminuída, assim como a sua capacidade para elaborar um planeamento eficaz das horas que tinha pela frente, para não falar na planificação dos meses e dos anos do seu futuro.»)

 Sob muitos pontos de vista,« Elliot já não era Elliot» ( tal como « Gage já não era Gage»): Elliot fazia um péssimo uso do seu tempo, perdeu a noção das prioridades e objetivos a atingir em cada tarefa(«Podia dizer-se que Elliot se tinha tornado irracional em relação ao enquadramento necessário para a sua prioridade principal, enquanto dentro de enquadramentos menores, que diziam respeito a tarefas subsidiárias, as suas ações eram desnecessariamente pormenorizadas.»), acabou por ser despedido de sucessivos empregos, dedicou-se a passatempos irracionais, mergulhou em sucessivos negócios desastrosos, a nível amoroso divorciou-se, casou e voltou a divorciar-se, etc.

Mas afinal, quais os motivos para estas mudanças tão significativas no comportamento de Elliot? Porque é que o QI e o raciocínio de Elliot se mantiveram mas as suas ações mudaram? António Damásio explica: «O cérebro não é uma extensa massa disforme de neurónios que fazem a mesma coisa onde quer que se encontrem. Acontece que as estruturas destruídas em Gage e Elliot são as que são necessárias para que o raciocínio culmine numa tomada de decisão.»

A lesão pré-frontal, no caso de Elliot, ocorreu no circuito orbitofrontal-amígdala( que é uma área do cérebro que tem pertinência na tomada de decisões sensatas, cruciais para a vida pessoal e interpessoal e na elaboração de pensamentos claros). 

  • Córtex orbitofrontal, área da lesão pré-frontal de Elliot , que teve origem num tumor.

Assim, Elliot não perdeu as capacidades de avaliação racional das situações, nem a inteligência e a memória, nem perdeu capacidades motoras e no âmbito da linguagem. Contudo, tornou-se incapaz de tomar decisões de forma adequada ( sobretudo quando implica matéria pessoal e social) ,  incompetente para planear o futuro ( não tendo em consideração fatores decisivos para escolhas ponderadas como, por exemplo, os resultados, emoções e sentimentos das escolhas passadas) e incapaz de aprender com os erros do passado. Tudo isto acontece porque o seu raciocínio deixou de ser influenciado por sinais provenientes dos mecanismos da emoção. Elliot ficou vazio de emoções e sentimentos, tornando o seu intelecto desapaixonado e tristemente inútil.

Todas estas conclusões foram possíveis pois , a certo ponto do seu estudo deste caso, António Damásio constatou o seguinte: «Apercebi-me de que tinha estado excessivamente preocupado com o estado da inteligência de Elliot e com os instrumentos da sua racionalidade e de que não tinha prestado muita atenção ás suas emoções, por diversas razões.» Sendo que, após tirar esta ilação, começou a interessar-se mais acerca do papel das emoções neste caso em concreto. Assim, chegou á conclusão de que « Elliot era capaz de relatar a tragédia da sua vida com uma imparcialidade que não se ajustava á dimensão dos acontecimentos.» e o próprio paciente assumiu que «(...) os tópicos que anteriormente lhe suscitavam emoções fortes já não lhe provocavam qualquer reação, positiva ou negativa».

Damásio ficou intrigado com a possibilidade de a alteração de emoções e sentimentos poder ter algum papel nas falhas de decisão de Elliot  e, através de alguns testes realizados com o paciente, concluiu que este apresentava uma dissociação entre deficiência na tomada de decisões na vida real e normalidade nos testes de laboratório( sendo que a deficiência parecia radicar-se nos estádios de raciocínio mais avançados ,próximo ou no momento de tomada de decisão).

Depois de acompanhar o caso de Elliot, Damásio decidiu verificar se as observações se repetiam noutros pacientes com lesões pré-frontais do tipo registado em Elliot, tendo analisado 12 doentes( até 1993) e em todos os casos foi encontrada uma associação entre deficiência na tomada de decisões e perda de emoções e sentimentos.(«A capacidade da razão e a experiência de emoções estão reduzidas em conjunto, e as suas limitações sobressaem num perfil neuropsicológico em que a atenção, a memória, a inteligência e a linguagem em termos dos seus níveis básicos parecem tão intactas que nunca poderiam ser invocadas como explicação das falhas dos doentes na sua capacidade de juízo»)

A hipótese do marcador somático:

O caso de Elliot é fundamental para a formulação da Hipótese do Marcador Somático, desenvolvida por António Damásio. Esta hipótese estabelece uma estreita relação entre as áreas pré-frontais do cérebro e as reações com origem nas emoções e  propõe que as emoções desempenham um papel crucial na tomada de decisões ao gerar "marcadores somáticos" — sinais fisiológicos (como aceleração do coração, tensão muscular, etc.) associados a experiências passadas que orientam as nossas escolhas futuras.
Os marcadores somáticos são, assim, mecanismos que aumentam a precisão e a eficiência dos nossos processos de decisão, como que um sistema de orientação da decisão e da nossa relação social com os outros. Os sinais automáticos que desencadeiam protegem-nos imediatamente da repetição de prejuízos anteriores ou alertam-nos para benefícios passados.
Segundo esta hipótese, Elliot e outras pessoas com danos semelhantes nas áreas pré-frontais perdem total ou parcialmente a capacidade de formar estes marcadores, o que resulta em comportamentos de risco, dificuldade na tomada de decisões e atitudes irresponsáveis ou reprovadas socialmente.
Assim sendo, para Damásio, o ato de decidir está suportado, por um lado, no raciocínio (avaliação da situação e dos meios para se chegar ao objetivo) e, por outro lado, na avaliação emocional (baseada nas experiências anteriores e nas nossas preferências). 

Sendo que, no caso de Elliot, a vertente emocional está comprometida pois o paciente encontra-se vazio em termos de emoções e sentimentos. Assim, Elliot é a definição de «Saber mas não sentir» e o estudo do seu caso mostra a importância das emoções para o processo de tomada de decisão.

  • António Damásio
  • Capítulo 3 da Parte 1 do livro «O erro de Descartes»
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